A carta que mostra que papa Pio 12 provavelmente sabia do extermínio nazista em 1942 — antes do que admite o Vaticano
Documento datado de dezembro de 1942 refere-se especificamente a três campos de concentração e contradiz a versão sustentada pela Santa Sé. Uma carta recentemente encontrada sugere que, durante a Segunda Guerra Mundial, o papa Pio 12 (1876-1958) recebeu informações detalhadas de um padre jesuíta alemão de confiança, de que até 6 mil cidadãos judeus e poloneses eram assassinados diariamente nas câmaras de gás da Polônia ocupada pela Alemanha nazista.
Esta é uma descoberta importante porque contradiz a posição oficial mantida pela Santa Sé de que, naquele momento, a informação de posse da Igreja sobre as atrocidades nazistas era vaga e não confirmada.
A carta foi encontrada pelo arquivista do Vaticano, Giovanni Coco, e publicada no último domingo (17) pelo jornal italiano Corriere della Sera. A notícia foi intitulada 'Pio 12 Sabia' e sua publicação foi aprovada por funcionários da Santa Sé.
Datada de 14 de dezembro de 1942, a correspondência foi escrita pelo padre jesuíta Lother Koenig, membro da resistência antinazista na Alemanha. Ela foi endereçada ao secretário pessoal do papa no Vaticano, o padre Robert Leiber.
A carta faz referência a três campos nazistas — Belzec, Auschwitz e Dachau — e sugere que haveria outras cartas trocadas entre Koenig e Leiber, que desapareceram ou ainda não foram encontradas.
Para Coco, "a novidade e a importância deste documento vêm do fato de que, agora, temos certeza de que a Igreja Católica da Alemanha enviou a Pio 12 notícias exatas e detalhadas sobre os crimes perpetrados contra os judeus". E, por isso, o Vaticano "tinha informações de que os campos de trabalho, na verdade, eram fábricas da morte".
O historiador americano David Kertzer, autor de diversos livros sobre Pio 12 e seu papel na Segunda Guerra, declarou à BBC que a novidade sobre esta carta é que ela "fala especificamente dos crematórios, de milhares de judeus que eram lançados aos fornos todos os dias".
Outro ponto importante é que ela foi apresentada por um arquivista do próprio Vaticano.
"Parece-me a demonstração de um esforço no Vaticano — ou, pelo menos, em partes do Vaticano — para começar a aceitar esta história", acrescentou Kertzer.
Documentos desclassificadosCoco afirma que a carta estava entre uma série de documentos que, até pouco tempo, eram guardados de forma desorganizada na Secretaria de Estado do Vaticano.
Para Suzanne Brown-Fleming, diretora de programas acadêmicos internacionais do Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos em Washington, a publicação destes arquivos mostra que o Vaticano está levando a sério a declaração do papa Francisco de que "a Igreja não tem medo da história".
Francisco decidiu ordenar a abertura dos arquivos da guerra em 2019.
"Existe o desejo e o apoio de que os documentos sejam avaliados cuidadosamente do ponto de vista científico, sejam suas revelações favoráveis ou desfavoráveis [ao Vaticano]", afirma Brown-Fleming.
"Com a abertura dos arquivos vaticanos daquele período, há três anos, desenterramos uma série de documentos que demonstram como o papa estava bem informado sobre as tentativas nazistas de exterminar os judeus da Europa, desde o momento em que eles começaram a avançar", afirmou Kertzer à BBC. "Esta é apenas uma peça a mais."
Kertzer acrescenta que, além das revelações trazidas por esses documentos, "o que prejudicou a reputação do Vaticano foi sua recusa a enfrentar esta história com os olhos abertos".
As discussões sobre o legado de Pio 12O documento recém-publicado provavelmente irá alimentar o debate sobre o legado de Pio 12 e sua controversa campanha de beatificação, atualmente suspensa.
Seus defensores sempre insistiram que o pontífice trabalhou de formas concretas, nos bastidores, para ajudar os cidadãos judeus — e que não se pronunciou sobre o assunto para evitar o agravamento da situação dos católicos na Europa ocupada pelos nazistas.
Já seus detratores afirmam que, no mínimo, faltou-lhe coragem para divulgar as informações que ele detinha, apesar dos pedidos diretos das potências aliadas que lutavam contra a Alemanha.
Um dos livros de Kertzer, por sinal, chegou a revelar uma longa negociação secreta entre Pio 12 e Adolf Hitler, com vistas a um acordo de não-agressão.
Mas as evidências reunidas indicam que o papel de Pio 12 na Segunda Guerra Mundial era ambíguo. Afinal, embora considerasse o nazismo um movimento político pagão que destratava os católicos, o papa não foi particularmente incômodo para o Terceiro Reich.
E Pio 12 também não denunciou claramente o extermínio judeu, embora talvez tivesse conhecimento da barbárie que ocorria na Europa controlada pelos nazistas.
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